segunda-feira

Conversávamos sobre lealdades, patriotismo e, enfim, sobre mantermo-nos vivos dentro do nosso próprio país.

O George receava que os altos comandos ingleses se estivessem a vender aos nazis. Ironicamente digo-lhe que isso talvez não fosse mau, que o Hitler parecia ter mais preocupações sociais que os nossos governantes. O George olha para mim, encaixa a ironia, ajeita-se na cadeira e responde calmamente mas num raciocínio tão certeiro que nunca mais pude esquecer:

- "A única coisa boa no meio disto tudo é a pretensão de Hitler ser o amigo dos pobres estar a ser abalada pela base. As pessoas que estão realmente dispostas a pactuar com ele são os banqueiros, os generais, os bispos, os reis, os grandes industriais, etc., etc... Hitler é o chefe de um contra-ataque da classe capitalista que se está a organizar numa vasta corporação, perdendo no processo alguns dos seus privilégios, mas mantendo, apesar de tudo, o seu poder sobre a classe trabalhadora. Quando chega o momento de resistir a um ataque destes, qualquer pessoa da classe capitalista tem de ser traidor ou meio traidor, dispondo-se a engolir as indignidades mais tremendas, em vez de resistir com unhas e dentes... Para onde quer que se olhe, seja para os grandes aspectos estratégicos ou os pormenores mais insignificantes da defesa local, percebe-se que qualquer luta verdadeira implica revolução. É evidente que o Churchill não consegue ver ou aceitar isto, por isso vai ter de ir à vida. Agora, se vai à vida a tempo de salvar a Inglaterra de ser conquistada, isso depende da rapidez com que o povo em geral se consiga aperceber das questões essenciais. Só receio é que as pessoas só se mexam quando já for tarde de mais."*





* George Orwel, in "diários"

domingo

Ontem desapareceram 3 da fábrica.

Sem ninguém se aperceber. Estão a ser interrogados e para a semana vão ao Congresso. Não percebo como se defende a liberdade com repressão.





quinta-feira

Uma criança quando nasce não sabe ao que vem.

Se os dois filhos e as três filhas dos Silva que moram ao fundo da rua soubessem, ficavam dentro da mãe.
Nasceram já com fome. Trabalharam desde os primeiros tropeços verticais. Até hoje não sabem ler as legendas da televisão que conseguem espreitar em casa dos vizinhos.
Ainda assim, no natal, rezam como os outros, cantam como os outros. Para quê? Em nome de quê?





quinta-feira

Maltratadas, espancadas, esfaqueadas, assassinadas.

Por eles. Os mesmos que lhe puseram o anel no dedo e disseram "sim". Os mesmos que lhes prometeram amor eterno. Os mesmos que lhes pediram desculpa por cada estalo "inocente". Uma vez. Duas vezes. Três vezes. Demasiadas vezes. Sempre mentira.

Às vezes irrito-me, zango-me com ela. O dia em que achar que lhe posso levantar a mão é o dia em que deixei de ser o homem que não precisou de lhe dizer "sim", porque a perenidade do que nos une não precisa de confirmação.

As filhas são duas. Tenho cada vez mais medo que cresçam. O filho é um. Espero que o ajudemos a crescer bem, para que não se torne num dos que pedem desculpa.






domingo

Sempre que a vejo revolv(t)o-me por dentro.

Um dia ele disse que um copo de vinho dava de comer a um milhão. É o pior de tudo, quando a miséria está no pensar e no mandar. Guerra sem balas nem quartel.



quarta-feira

30.11.39: Tempo muito ameno, sem vento.

Alguns chuviscos raros e ligeiros. Andam por aí morcegos (reparei que havia mosquitos a voar por todo o lado no outro dia, apesar das geadas recentes). Sachei um pouco mais do canteiro que tem as ervas daninhas. Fiz a parte da frente do caminho. Podei as rosas trepadeiras brancas, espero que bem. Já há algum tempo que não vejo nem ouço mochos.
8 ovos.




George Orwell, in "diários"


segunda-feira

Nunca o tempo foi de heróis.

Nem ontem nem muito menos hoje.
 
 
 
 
 

quinta-feira

Ainda não andava na primária.

Chegámos ao Alentejo, à aldeia dos avós. O avô tinha calos nas mãos, da enxada. Sei bem que os tinha que os experimentei uma vez ou outra.

Num dos dias dessas férias levou-me ao café por onde passava sempre depois de jantar. Não era dia de futebol. A dada altura puxou-me da brincadeira e sentou-me ao colo. A mão dos calos encostou o dedo à boca num baixinho mas forte "shiu".
Os homens e os moços começaram a cantar. Já ouvira muitas músicas, nada como aquilo. Parecia que vinha de debaixo do chão. Pasmei-me, arregalado, o tempo todo da cantoria.
Hoje sei que aquilo é da gente.






Daqui me despeço com amizade.





quarta-feira

Já quer ir para a fábrica.

Deixou crescer a barba de ontem para hoje. Coisas dela, que gosta de o mimar. Coisas dele, que gosta de ser mimado. Certo, certo é que o reguila é mesmo fotogénico. Alegra-me todos os dias.





terça-feira

Eu sabia que ia dar asneira.

Quando vi este, engoli em seco. A minha liberdade que começava a aparecer, rapidamente se iria esfumando com o tempo. Tinha a certeza.
 
 
 
 
 

segunda-feira

Seremos domáveis?

Penso que não. Penso que nos deixamos domar. Não poucas vezes me apetece desligar o raciocínio, enfiar-me na bolha e sossegar. Facilmente nos entregamos de mãos caídas. O estado de alerta tem de ser constante.




 

quinta-feira

Reformou-se.

Foram 53 anos de fábrica. Começou aos 12. Calado e discreto no trabalho, assertivo e inquebrável na luta pelos nossos direitos. Nunca chegou a chefe de secção, imagine-se porquê. Um grande abraço, companheiro Márquez.





quarta-feira

Um sobrinho agora paquete.

Disseram-lhe que o turismo é que está a dar. Ele foi na cantiga, abandonou-nos na fábrica. Acho-o misterioso demais para o trabalho, mas...





segunda-feira

domingo

Tremiam-me as pernas.

Cansado com o nervoso miudinho. A coragem que me entrou no peito fez de ti o meu abraço eterno. Ainda hoje te juro que a lua ficou maior no instante em que se deu o beijo.





sábado

Fiz aquela fisga com dedicação e aprumo.

Nem o pai nem a mãe gostavam dela. Ele não me queria muito brincado, ela não me queria distraído dos livros. A fisga guardei-a, está agora nas mãos do reguila. Os livros perderam a serventia. Calos nas mãos só do trabalho, nada de escritas.





quinta-feira

Sobre moda.

Uma coisa é certa, eu não visto gold.
 
 
 
 
 
 
 

quarta-feira

Dies Irae

Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!

Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'

segunda-feira

Tony Bennett.

É quase sempre o Sinatra mas comigo não. Acima está ele. É desconcertante o constante quase escangalhar a rir, é desconcertante ter chegado a esta idade com a voz neste estado.





sábado

Matinés.

Eles estão vivos.





sexta-feira

7 de Novembro de 1917.

Nunca esquecerei o momento em que as portas do palácio ficaram abertas. Hoje começa o novo. Que seja ditado o fim dos amos, que o nosso trabalho nos seja recompensado de forma justa.
 
 
 
 
 

domingo

Por vezes dão-lhes uma recauchutagem.

Continuo a preferir as originais. Com elas desenvolvi uma patologia que me faz desejar, regular e fortemente, comer pizza.
O Donatello, já não sei explicar porquê, mas para mim foi sempre o Donatello.






sexta-feira

quinta-feira

O clique que nos marca os dias.

A primeira oportunidade para pormos a conversa em dia. Depressa, que a linha não espera.





quarta-feira

Soltar a raiva.

Procurar escapes é preciso. Triste é quando lhe tomamos o gosto e esquecemos os filtros. É impecável ter uma dúvida e segundos depois ter mil sítios onde a esclarecer. É menos impecável ler comentários a notícias onde o veneno destilado é acompanhado por industriais doses de estupidez e pura mesquinhez.

Cá por casa cheiramos este vício em doses residualmente recomendáveis. Ainda nenhum de nós troca a brisa de fim de tarde por olhos hipnotizados pelo ecrã. Que este ainda seja eterno.





terça-feira

Fumo.

Nas chaminés e no meu estar. A noite foi de insónias. Das valentes, sem pregar olho. O dia foi de trabalho, sem descanso e de olhos piscos. Hoje descanso-me mais cedo, a ver se ludibrio a insónia.